INSURREIÇÃO E CRISE INSTITUCIONAL

Entenda o que está acontecendo agora no Nepal

País asiático mergulha em caos político após censura, bloqueio de redes sociais e revolta popular; conflito já deixa dezenas de mortos e feridos.

Foto: Fp/RS
Foto: Fp/RS

O Nepal vive um de seus momentos mais críticos desde o fim da monarquia, em 2008. O que começou como um protesto contra o bloqueio de redes sociais se transformou, nesta terça-feira (9), em um levante nacional, liderado, em grande parte, por jovens que manifestam frustração com um sistema político corroído por corrupção, nepotismo e promessas não cumpridas.

Para o jornalista americano Michael Shellenberger, especialista sobre autoritarismo digital, “o que ocorre no Nepal é um exemplo claro de como governos usam o pretexto da regulação para impor censura e suprimir críticas legítimas da população”.

O estopim foi o decreto governamental que impôs restrições a pelo menos 26 plataformas digitais, entre elas Facebook, X/Twitter, YouTube e TikTok. A justificativa oficial alegava falta de registro legal no país por parte das empresas, mas a população viu que a medida, na prática, era uma aplicação de censura direta aos canais de crítica e denúncia, sobretudo em um ambiente já saturado por escândalos políticos e ausência de transparência institucional.

Em editorial, o portal norte-americano The Daily Wire classificou a medida como “um grave ataque à liberdade de expressão sob o disfarce de legalidade”, afirmando que “a reação do povo nepalês deve servir de alerta global contra governos que tentam controlar a internet sob justificativas regulatórias”.

A juventude urbana reagiu instantaneamente. Mobilizados inicialmente pelas redes alternativas e canais encriptados de comunicação, milhares de manifestantes tomaram as ruas da capital, Katmandu, exigindo a revogação imediata da medida. A partir daí, as manifestações escalaram para reivindicações muito mais amplas: o fim da corrupção endêmica, o afastamento de políticos ligados a clãs familiares tradicionais, e reformas profundas na estrutura de representação e governança nacional.

O movimento foi batizado informalmente de “Levantamento da Geração Z”, em referência à massa jovem que lidera os protestos. Diferente de atos anteriores, este tem características descentralizadas, horizontais e espontâneas. E é justamente essa tríade que dificulta tanto a repressão quanto a negociação por parte das autoridades. As pautas são amplas e variadas, uma vez que vão desde a liberdade digital até a convocação de novas eleições, mas o denominador comum é o desejo de ruptura com o atual establishment.

Em análise publicada no portal Unherd, o cientista político Ravindra Mishra, ex-editor da BBC Nepali e ex-candidato à liderança política do país, afirmou que “esta geração de jovens não está apenas protestando contra o governo atual, mas contra a falência moral de toda a classe política que domina o Nepal desde a queda da monarquia”.

A resposta do governo foi imediata e violenta. Tropas da polícia antitumulto foram deslocadas para os principais pontos de protesto e usaram gás lacrimogêneo, balas de borracha e, segundo relatos de testemunhas e registros em vídeo, até munição real contra os manifestantes. Até o momento, ao menos 19 pessoas morreram e centenas ficaram feridas. As autoridades declararam toque de recolher indefinido em Katmandu e chamaram as Forças Armadas para patrulhar as ruas.

O jornalista Glenn Greenwald também repercutiu a repressão. “Nepal está usando a força contra manifestantes que querem liberdade de expressão e combate à corrupção. Mas, claro, essa violência estatal não mobiliza a indignação de quem diz defender ‘democracia’”, comentou.

Paralelamente à escalada da repressão, começaram a surgir ações diretas dos manifestantes. Prédios do Parlamento foram invadidos, a sede da Suprema Corte foi parcialmente incendiada e casas de figuras políticas influentes, como o ex-primeiro-ministro Sher Bahadur Deuba, foram depredadas. Um vídeo que viralizou mostra o Ministro da Economia sendo cercado por jovens e jogado em um rio da capital. Logo depois, outros membros do governo também foram lançados no mesmo local. As imagens viraram símbolo da inversão de forças que tomou conta do país.

A crise atingiu o ápice com a renúncia do primeiro-ministro K.P. Sharma Oli, na noite desta terça-feira (9). Oli, que já enfrentava uma série de denúncias por abuso de poder, deixou o cargo em meio à pressão popular e à debandada de aliados políticos. A renúncia, no entanto, não conseguiu conter a revolta. Os protestos continuaram mesmo sob sinalizações de recuo do alto escalão governamental, agora com reivindicações em defesa de um reforma mais ampla do sistema político e na responsabilização criminal de membros do governo que autorizaram o uso da força.

Em editorial publicado no Free Press, a jornalista Bari Weiss escreveu que “o Nepal está assistindo ao colapso de uma farsa institucional disfarçada de democracia, e isso está sendo denunciado não por partidos de oposição, mas por jovens que perderam a fé no sistema”.

Desde o início dos atos populares, o assunto dominou a internet, alcançou mais de 1 bilhão de menções e, inevitavelmente, passou a pautar os principais veículos de comunicação do mundo. O Nepal, que nos últimos anos tentava se reerguer politicamente após décadas de instabilidade, entre guerra civil, queda da monarquia e sucessivos governos frágeis, volta ao epicentro de uma convulsão social.

O Conexão Política fez um levante com alguns analistas. Para eles, a mobilização espontânea, liderada por uma geração sem memória da monarquia, mas já desiludida com a democracia parlamentar, é um recado claro de uma ruptura de ciclo que vai desafiar em uma necessidade de refundação institucional.

O canal Lotuseaters, sediado no Reino Unido, também deu espaço ao entendimento de que a força no país se dá aos grupos juvenis. “A juventude do Nepal percebeu que foi enganada. Os jovens agora estão queimando o contrato social que nunca assinaram”, externou.

A tensão não está somente no Nepal. O colapso já ultrapassa fronteiras: voos comerciais foram cancelados, alertas de segurança foram emitidos e o turismo, que é uma das principais fontes de renda do país, está paralisado por tempo indeterminado. A crise nepalesa deixou de ser um ponto isolado e passou a ser um problema regional.