CONTROLE ESTATAL

Ditadura chinesa atua com uso de hospitais psiquiátricos para neutralizar críticos, dissidentes e opositores

Reportagem especial revela práticas de repressão política por via médica na China sob regime absoluto de Xi Jinping. Mesmo com leis em vigor, internações involuntárias por motivos políticos continuam sendo praticadas em todo o país. Abusos incluem eletrochoques, vigilância pós-alta e perseguição judicial com base em laudos manipulados.

Foto: Joshua Tourcuatro
Foto: Joshua Tourcuatro

Uma investigação da BBC News traz os bastidores de como o regime chinês vem recorrendo à internação involuntária em hospitais psiquiátricos como método para silenciar críticos, dissidentes e opositores. O caso de Zhang Junjie, então com 17 anos, é um dos listados na investigação jornalística. Após protestar contra as medidas de lockdown em frente à sua universidade em 2022, ele foi hospitalizado à força com diagnóstico de esquizofrenia, sem qualquer processo judicial ou avaliação médica independente.

Junjie relatou ter sido amarrado e obrigado a ingerir medicamentos antipsicóticos durante os 12 dias em que permaneceu internado. Segundo ele, médicos e enfermeiros justificavam a hospitalização com base em suas opiniões contrárias ao Partido Comunista Chinês. O metódo de tortura ocorreu após seus professores alertarem a família sobre o protesto. No dia seguinte, na data de aniversário de 18 anos, dois homens o conduziram a um hospital sob o pretexto de realização de testes de covid-19.

Após a primeira alta, Junjie foi novamente detido ao publicar um vídeo soltando fogos de artifício durante o Ano Novo Chinês, contrariando uma proibição oficial. Ele foi acusado de “provocar brigas e criar problemas”, uma tipificação legal frequentemente empregada para punir manifestações políticas. A segunda internação durou mais de dois meses. “Tomar o medicamento me fazia sentir como se meu cérebro estivesse uma bagunça”, relatou. Segundo ele, a polícia fazia visitas regulares para verificar se os remédios estavam sendo consumidos.

Lei de Saúde Mental não impede internações forçadas

Desde 2013, a legislação de saúde mental da China proíbe, em tese, a hospitalização sem consentimento, salvo nos casos em que o paciente ofereça risco a si mesmo ou a terceiros. Apesar da resolução, segundo o advogado Huang Xuetao, que é um dos envolvidos na redação da norma, há uma escalada no uso indevido da lei para fins de repressão política. “Já me deparei com muitos casos como este. A polícia quer poder, mas evita a responsabilidade”, afirmou.

A BBC confirmou ao menos 59 casos de internações psiquiátricas impostas a cidadãos que protestaram ou denunciaram abusos de autoridades. Muitos relataram o uso de medicamentos sem autorização e, em alguns casos, eletroconvulsoterapia (ECT).

Internações sob falsa justificativa psiquiátrica

O ativista Jie Lijian, detido após protestar por melhores salários em uma fábrica em 2018, foi internado por 52 dias após a polícia afirmar que ele representava risco. Segundo ele, além da medicação forçada, foi submetido a sessões de ECT sem consentimento, com efeitos físicos severos. “Achei que estava morrendo”, declarou. Ele vive atualmente em Los Angeles, nos Estados Unidos, onde busca asilo.

Em 2019, diretrizes da Associação Médica Chinesa determinaram que a ECT só deve ser aplicada com consentimento e anestesia geral, mas o cumprimento dessas normas segue incerto.

Evidências de repressão sistemática

A BBC entrou em contato com médicos de quatro hospitais identificados nas denúncias, utilizando uma história fictícia. Quatro dos cinco profissionais confirmaram já ter recebido pacientes encaminhados pela polícia. Um dos médicos relatou a existência de uma categoria interna conhecida como “encrenqueiros”, enquanto outro afirmou que as autoridades continuam a monitorar pacientes mesmo após a alta. “A polícia vai verificar você em casa para garantir que você tome seu remédio. Se você não tomar, pode infringir a lei novamente”, disse.

Documentos médicos obtidos pela BBC sobre o ativista Song Zaimin, internado pela quinta vez em 2023, indicam que opiniões políticas estão sendo associadas a distúrbios psiquiátricos. Em um dos registros, consta: “Hoje, ele estava… falando muito, falando incoerentemente e criticando o Partido Comunista. Portanto, ele foi enviado ao nosso hospital para tratamento hospitalar pela polícia, pelos médicos e pelo comitê de moradores locais. Esta foi uma internação involuntária.”

Ao ser consultado sobre o caso, Thomas G. Schulze, presidente eleito da Associação Mundial de Psiquiatria, declarou: “Pelo que está descrito aqui, ninguém deveria ser internado involuntariamente e tratado contra sua vontade. Isso cheira a abuso político.”

Sistema jurídico desfavorece vítimas

Dados compilados entre 2013 e 2024 indicam que ao menos 112 pessoas tentaram processar autoridades chinesas por internações forçadas. Cerca de 40% dos casos envolviam reclamações contra o Estado. Apenas dois processos resultaram em decisão favorável aos autores. Parte dos casos nem sequer aparece nos bancos de dados judiciais oficiais, indicando possível censura.

A legislação chinesa permite que diagnósticos psiquiátricos graves sejam compartilhados com a polícia e com comitês de bairro. Isso, na prática, amplia o controle social sobre os indivíduos identificados como opositores.

Um dos casos recentes envolve Li, internado em 2023 após protestar contra a polícia local. Embora os médicos do hospital afirmassem que ele não apresentava transtorno mental, um psiquiatra contratado pelas autoridades emitiu laudo contrário. Após 45 dias de internação, ele tentou acionar o Judiciário para reverter o diagnóstico, mas teve o pedido negado. “Se eu não processar a polícia, é como se eu aceitasse estar mentalmente doente”, declarou.

Caso de Li Yixue é assunto global

A situação da vlogger Li Yixue voltou a colocar o regime chinês sob questionamentos. Após acusar um policial de agressão sexual, ela teria sido internada pela segunda vez e estaria sob vigilância em um hotel. Desde que fez uma série de denúncias, suas postagens viralizaram e isso fez chamar a atenção da imprensa internacional.

A BBC encaminhou questionamentos à embaixada da China no Reino Unido. Em resposta, o governo afirmou que o Partido Comunista “reafirmou” a necessidade de “melhorar os mecanismos” em torno da Lei de Saúde Mental e que “proíbe explicitamente a detenção ilegal e outros métodos para privar ou restringir ilegalmente a liberdade pessoal dos cidadãos”. Não houve comentário sobre os casos específicos.