No julgamento da chamada “regulação das redes sociais”, na última quinta-feira (26), a ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF) afirmou que “não se pode permitir que haja 213 milhões de pequenos tiranos soberanos”, numa tentativa de justificar o controle estatal sobre a liberdade de expressão.
A fala revela muito: a desconfiança das instituições em relação ao povo – justamente aquele de quem deveriam emanar os poderes democráticos – e a disposição para sacrificar liberdades em nome de um suposto bem comum abstrato. O Estado, mais uma vez, tenta se impor como guardião da verdade e árbitro do aceitável.
Vivemos uma era em que palavras são tratadas como feitiços. Ditas com a entonação correta emulam virtudes, legitimam autoridades, justificam abusos. Poucos termos contemporâneos ilustram melhor esse fenômeno do que a expressão “instituições democráticas”. Invocada como escudo moral, essa fórmula vaga passou a justificar desde a censura até o arbítrio estatal, tornando-se um símbolo sem conteúdo, mas com imenso poder retórico. Como bons ilusionistas, os que detêm o poder sabem: o truque está em onde o público põe os olhos.
A erosão do significado das palavras não é novidade. Desde Guilherme de Ockham, que negava realidade aos universais, até Descartes, que duvidava de tudo salvo do próprio pensamento, a modernidade embarcou em um processo de desintegração simbólica. Restaram nomes sem essência, conceitos flutuantes, usados à conveniência de quem os profere. “Justiça social”, “inimigos da democracia” e “instituições democráticas” entraram no mesmo rol de palavras encantadas: dizem tudo e nada, dependendo do locutor.
A verdadeira democracia, no entanto, não pode ser sustentada por abstrações. Requer raízes sólidas nas liberdades individuais e nos vínculos sociais, não em castelos de retórica. Basta observar o Brasil: é possível criticar livremente qualquer pensamento dissidente, mas não o Supremo Tribunal Federal; senadores são punidos por declarações contra o Judiciário; prende-se o trabalhador informal, e livra-se o criminoso reincidente. Tudo isso em nome das tais “instituições democráticas”.
Não é de hoje que essa confusão entre o social e o estatal ameaça as liberdades. Wilhelm von Humboldt, no século XIX, já alertava para os riscos de um Estado que, mesmo bem-intencionado, uniformiza o humano, suprime a individualidade e substitui a liberdade criadora pela dependência passiva. O verdadeiro laço social, segundo ele, nasce da liberdade; é ela que permite o florescimento do indivíduo, a construção do bem-estar e o fortalecimento das relações espontâneas – e não a atuação reguladora do Estado.
Ainda mais “afrontoso” é Frédéric Bastiat, que denunciava a tendência ainda na França pós Noites do Terror, onde se criou entes metafísicos – como “o Estado” ou “a Nação” – dotados de vontade própria, superiores à dos indivíduos. Bastiat antecipava com precisão o perigo de se atribuir a essas ficções o papel de guias morais da sociedade. No fundo, dizia ele, essas construções não passam de instrumentos de dominação, nos quais o cidadão deposita todas as esperanças, como um mendigo diante de um ídolo que promete tudo, mas só pode dar aquilo que antes tirou. O alerta permanece atual: quando o Estado se torna essa entidade moralmente superior, capaz de decidir o que pode ou não ser dito nas redes sociais, o resultado é a infantilização da sociedade e o sufocamento da liberdade.
Não por acaso, democracias mais sólidas nasceram de outras raízes. Tocqueville, ao estudar os Estados Unidos, percebeu que o país prosperou ao permitir que os cidadãos se organizassem por si mesmos, com mínimo controle estatal. O célebre Mayflower Compact de 1620 é exemplo disso: uma aliança voluntária, baseada na fé e no autogoverno, firmada por indivíduos livres. Não havia ali abstração alguma – apenas “Eles, o Povo”, e sua responsabilidade coletiva de governar a si próprios.
É esse espírito que distingue a tradição americana da francesa – Bastiat notava. Enquanto a França depositava no Estado a missão de moralizar, educar e enriquecer os cidadãos, os americanos declaravam sua união como fruto da ação do próprio povo, sem esperar nada de fora. A liberdade como ponto de partida – e não como promessa de governo.
A história nos obriga a desconfiar de toda tentativa de definir o que é “democrático” por decreto, tribunal ou editorial. A democracia verdadeira é, antes de tudo, antitotalitária: ela não se impõe, não se presume e, sobretudo, não admite que alguém fale em nome do povo como se o representasse por essência. Quem se diz mais capacitado para decidir pelos outros – sob o pretexto de defendê-los – já traiu a própria ideia democrática.
Há dois grupos em disputa no Brasil de hoje: os que têm humildade para reconhecer que não podem falar pelo povo, e os que se consideram moralmente superiores ao ponto de poder conduzi-lo como rebanho. Os primeiros defendem a liberdade; os segundos disfarçam seu autoritarismo com palavras bonitas e promessas salvacionistas. E o instrumento mais poderoso destes últimos é a “instituição democrática” – um termo usado como varinha mágica para legitimar o que bem entenderem.
Contra isso, só há um antídoto: a verdade nua, concreta, direta. Precisamos desfazer a ilusão. Reconhecer que instituições não são entidades místicas – são feitas por pessoas, que podem agir de forma democrática ou não. O critério é simples: seus atos aproximam ou afastam os cidadãos da liberdade de decidir o próprio destino? Favorecem a sociedade ou expandem o poder estatal? Qualquer resposta honesta, diante do cenário atual, é inquietante, ainda mais quando somos, cada um do povo, abertamente tratados como “pequenos tiranos”.
É preciso, de fato, muito ilusionismo — e um contorcionismo moral digno dos piores regimes — para chamar cada cidadão de “pequeno tirano” e ainda se dizer defensor da vontade popular. Democracia, para esses mágicos do poder, é um espetáculo onde só eles têm o microfone, a platéia está amordaçada e aplaudir é obrigatório.
- O autor do artigo, Marcelo Demirdjian, é advogado, professor universitário e doutorando em Desenvolvimento Local pela Universidade Católica Dom Bosco. Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, foi agraciado com a Medalha de Mérito Advocatício do Estado de Mato Grosso do Sul em reconhecimento à sua contribuição jurídica e acadêmica.